Páginas

domingo, 27 de fevereiro de 2011

E ele era feliz e nao sabia



Era domingo.  Profissional muito bem sucedido, gostava de passar essas tardes preguiçosas apreciando cada detalhe de seu vasto jardim. Inspecionando os “domínios”, como lhe aprazia dizer para si mesmo,  sorrindo com o canto dos  lábios.
Observava tucanos, sanhaços e sabiás com inspiração e enlevo, portando nos olhos um brilho delicado, distante e especial.

Este ensemble conjuntural, esta multitude de sons e cores formando um só e suavemente inebriante todo, compõem deleitoso prazer que a ele faz viajar em verdadeiro transe dionisíaco capaz de  lhe erradicar as inibições. Era, sempre fora,  Dionísio, talvez daí seu amor ao néctar das videiras e, por seus jardins embevecedores, sátiros, centauros e ninfas bebem o vinho, tocam flautas, tomam parte em danças e jogos amorosos.

Tem especial predileção pelo lago povoado por carpas multicoloridas que fizera instalar sob o piso de cristal do varandão do salão de estar, verdadeiro batelão urbano fincado às margens de uma lâmina d’água prenhe de ninféias, nascida no mirífico berço de seus devaneios. Mirando plantas, nuvens, aves e peixes, livre de qualquer amarra ao presente, nesses momentos saltita pelo tempo sem qualquer ordem ou hierarquia, indo do mais longínquo passado ao mais improvável futuro com espantosa velocidade.

Naquele domingo, a mente estava especialmente inquieta. Transitava entre as lembranças, as projeções e as conclusões num redemoinho ciclópico que em pouquíssimo tempo o levou adiante para o passado.

A família, vinda do interior tangida pela sorte (vicissitudes) , havia se espraiado pela metrópole. O mais culto, seu pai, profissional liberal que de fato se liberara, e os que a ele se igualaram pela bolsa bafejada pela abastança, moravam na zona sul da cidade, próximo ao mar. Os outros, bem, os outros eram os outros. Seres simples, moradores de subúrbio, com casinhas singelas, fachadas ornadas por quadros em azulejos, trabalhavam no pequeno comércio, sobrevivendo, mas cavando à unha a escada do próprio sucesso.
Tendo na memória genética o espírito gregário dos clãs ancestrais, esses descendentes de libaneses tinham tendência a se agruparem em manada, o que faziam com regularidade aos domingos.
Da infância e adolescência, por isso, tinha a marcada memória dos almoços dominicais, vários deles com o conforto da brisa marinha, muitos outros, porém,  regados a calor suarento de subúrbio, burburinho de primos que falavam alto e Ataulfo Alves na vitrola, cantando as saudades de Miraí e a nostalgia dos tempos de criança, em que ele, Ataulfo, era feliz e não sabia. Na época e nas circunstâncias, não compreendia o compositor.

Quando o almoço não era o autenticamente farto mezzeh libanês encenado na zona sul por cunhadas e concunhadas que mal disfarçavam a competição, tudo era diferente. A começar pela viagem para as paragens suburbanas da primalhada, jornada  um tanto desagradável  em seu trajeto, pela distância e pelo calor abafado , num tempo em que os carros não conheciam ar condicionado.

Mas havia compensações.  

Se nos dias de semana, naquela época, o trânsito era bom, nas manhãs de domingo era simplesmente adorável, pois permitia que seu pai dirigisse muito rápido, sacolejando o brioso Vauxhall pelas ruas de paralelepípedos, fazendo do carro inglês berço a balançá-lo para junto dos corpos da primas apetitosas a quem sempre davam carona e entre as quais se sentava.

Por outro lado, outros prazeres encontrava após a chegada. Adorava cruzar com os olhos vivazes, espertos e ardentes da vizinha da tia. Instado a dançar, encontrava deleite na cintura de vespa da namorada do primo, entopetado e gabola, candidato a corno. E que delícia  as coxas roliças da amiga da prima suburbana, em quem se roçava no trânsito pelo pequeno corredor da casa. Pena que, em razão das circunstâncias, ficava só nisso.

Pela mesma razão, a compensação maior vinha com o nome de macarronada. Era uma coisa rara e  respeitosa. Entronizada como algo divino, a macarronada tinha um quê de cerimônia.  Macarrão grosso, daqueles pacotes compridos e azuis. Queijo mineiro, ralado grosso. O molho,  alquimicamente preparado pela avó durante horas, era outra raridade. Coisa incomum, então como hoje!
Por isso, dedicava-se com afinco, deleite e prazer orgástico à sápida massa, al dente e untuosa. Às bocadas, fazia rolar pelo palato e por todas as papilas gustativas, sorvendo cada sensação com olhos fechados e um longo suspiro, enquanto lhe percorria, da nuca ao cóccix, um arrepio indescritível.
De tudo isso, porém, hoje só restam as reminiscências e a receita da macarronada da avó.
Ingredientes
1 quilo de alcatra ou patinho, limpo e cortado bem miúdo (não moer)
½ quilo de copa cortada em cubinhos
80 gr. de toucinho defumado cortado bem miudinho
1 xícara de azeite de oliva extra virgem
2 cebolas cortadas em cubos pequenos
5 dentes de alho cortados em lâminas bem finas
2 colheres de sopa de alcaparras em conserva
200 gr. de azeitonas pretas gregas, sem caroço
4 colheres de sopa de cheiro verde picado
2 colhers de chá de orégano
4 folhas de louro
2 colheres das de café de bicarbonato em pó
20 tomates maduros, sem pele e sem sementes, batidos no liquidificador
2 xícaras de extrato de tomate
Modo de preparar
1. Aqueça bem o azeite de oliva e coloque o toucinho defumado deixando derreter e fritar bem
2. Acrescente o alho, a cebola
3.Coloque a carne e frite até ficar bem dourada
4. Acrescente a copa, as alcaparras, as azeitonas, o orégano e o louro e deixe refogar bem por 20 minutos
5. Coloque os tomates batidos e o extrato de tomates e deixe levantar fervura. Salgue a gosto
5. Reduza em fogo bem brando, mexendo de vez em quando até o molho engrossar bem, sem grudar no fundo da panela e a carne estar bem macia. Se necessário vá pingando vagarosa e controladamente água durante o cozimento
6. Quando estiver pronto, acrescente o bicarbonato, deixe levantar fervura , mexa bem e apague o fogo.